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A Ascensão da Criatura

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 8 de fev. de 2021
  • 18 min de leitura

Atualizado: 2 de mai. de 2021

Este conto se trata de investigadores do sobrenatural, que eu escrevi para uma coletânea mas não cheguei a ser selecionada. Acredito que o principal motivo foi porque o conto deveria ser de horror, mas não chega a apavorar tanto assim. Se você está com medo, não tema - a narrativa é uma mescla empolgante inspirada em Frankenstein, A Forma da Água e Lovecraft. Boa leitura e diversão :)



O sol já baixava no horizonte, os últimos raios projetando formas abstratas diante do portão de ferro da mansão. Homens de terno preto e pontos eletrônicos na orelha criavam um corredor humano para bloquear a visão da entrada principal. Um carro importado de cor escura roncava o motor, aguardando seu passageiro. O silenciar dos animais diurnos dava passagem à dança musical dos insetos, anfíbios e répteis noturnos da Mata Atlântica.


Não muito longe dali, atrás da cerca viva que escondia a casa, dois homens esperavam. O mais jovem estava de costas para a cena, apoiado na cerca, e roía as unhas de maneira frenética enquanto encarava a trilha de um grupo de formigas. Ele vestia um sobretudo similar a uma capa de chuva, de cor marrom, e seu cabelo encaracolado grudava na testa devido ao calor tropical. Seu companheiro, de cabelos grisalhos e curtos, vestia uma camisa simples e um chapéu coco, e usava um lenço de pano para enxugar o suor.


- Só você mesmo para vir vestido assim, Tadeu - sussurrou o mais velho, abrindo um sorriso. Embora as rugas já delineassem o canto dos olhos e da boca, seu porte era de um jovem adulto - Está querendo parecer detetive, é?


- Ah é, foi por isso mesmo - disse, coçando o pescoço - Este bicho é perigoso, viu o tamanho? É daquelas que te deixam coçando - apontou para a trilha de formigas.


- Deixa de bobagem, Tadeu, temos que nos concentrar. Acha que é moleza nossa profissão? Jornalismo investigativo não é para moleque, vai te acostumando. Se você soubesse tudo que eu já fiz e vi nessa vida, sairia correndo.


A dupla cessou a conversa quando um barulho de pneu raspando o asfalto sinalizou que o carro do chefe do grupo havia saído. João espiou por um buraco improvisado e fez sinal de silêncio para Tadeu, aguardando a debandada dos comparsas. Em alguns minutos o terreno ao redor da mansão ficou vazio ao ponto do único som ser da natureza que circundava a casa.


- Lembra o que te falei, eles têm um vigia que fica em uma saleta na entrada leste da mansão, então temos que ir avançando próximos à cerca viva, onde as câmeras não pegam. Vamos precisar ser bem cuidadosos - sibila João, tirando da mochila duas lanternas de cabeça - Só ligue a lanterna quando já estivermos na mata.


Concordando com um sinal de positivo, Tadeu seguiu o colega pela portinhola que dividia a selva da mansão, e eles avançaram com as costas coladas contra a cerca viva, os olhares de frente para a casa. A única iluminação externa vinha de pequenos focos de luz distribuídos pelo chão, que estavam localizados junto à parede da mansão. Quando já estavam quase no fim do percurso, Tadeu deu um salto. Uma cobra rastejava sem pressa em direção à sua morada. João revirou os olhos e fez um sinal para continuarem.


Ao final da cerca viva, e já no começo da mata, um portão entreaberto sinalizava o começo de uma trilha. Os dois começaram a andar e logo tiveram que ligar as suas lanternas, na medida em que se afastavam da casa. Tadeu voltara a suar e a levar as unhas à boca, enquanto João, que ia à frente, usava o facão de sua cintura para retirar alguns galhos soltos no caminho.


- Seu João, eu estou achando muito esquisito estes caras estarem metidos em crime ambiental e terem esta mata intocada.


- Pois então, é tudo uma farsa! A fábrica deles fica bem longe daqui, mas eles mantêm este terreno do chefão intacto para mostrar que são amiguinhos da natureza. E eles eram donos deste terreno antes da legislação de áreas protegidas.


- Entendi. Espero que o informante esteja certo, porque se meter aqui nessa mata para nada... - murmurou Tadeu


- O informante garantiu que neste mato tem cachorro. Agora, vamos, chega de falar.


Andando pelo que pareciam ser longos minutos, João parou e direcionou sua lanterna para noroeste. Tadeu apontou também para a mesma direção, até que um lago lamacento ficou visível em meio à luz fosca. O lago se assemelhava a um mangue, com árvores que exibiam raízes acima da superfície da água. Os dois jornalistas se direcionaram até um terreno um pouco mais elevado, com passos cuidadosos.


Chegando a um local com grama espessa, eles se sentaram sem fazer barulho. Tadeu suava com o calor tropical, que parecia estar mais intenso; e João novamente puxara o lenço de pano do bolso para se secar. Mesmo à noite, na luz das lanternas, a água exibia uma cor amarronzada, e ali não se ouvia o som de anfíbios e outros animais que eles identificaram no caminho.


- Este mangue tá diferente - comentou Tadeu.


- Mas é bem como o informante descreveu - respondeu João - Nós só precisamos de provas suficientes para fazer uma matéria que de fato chame a atenção das autoridades.

Antes de o jovem responder, a água começou a borbulhar no lado oposto em que eles estavam. Imediatamente, os dois iluminaram a região com suas lanternas, com os corações batendo forte no peito. Quando os fachos de luz se encontraram, porém, o que quer que estivera ali antes desapareceu, deixando a água revolta no local.


- Seus inúteis, o que estão fazendo? Ela não gosta de luz! - sussurrou uma voz feminina, aparecendo de supetão ao lado dos dois jornalistas.


- AAAAAAAAAAAAH - gritou Tadeu, levantando e dando um pulo para trás.


João olhou torto para Tadeu e, ao diminuir a luz das lanternas, virou o rosto para encarar a dona da voz. Ela, de alta estatura e ombros largos, estava em completa harmonia com o ambiente em seu entorno, vestindo um chapéu também camuflado que escondia seu volumoso cabelo. Fechava o traje com um óculos de lentes duplas.


- É, já vi que é a primeira vez de vocês - continuou ela, revirando os olhos - Estão investigando a BioQuimia, não é?


- E quem quer saber? - perguntou João, com a mandíbula tensa. Tadeu ainda se recuperava do susto.


- Meu nome é Mara, sou bióloga e pesquisadora do Instituto Xaxim - mostrou um crachá de identificação.


- Respondendo a sua pergunta, nós estamos sim – falou João, relaxando e mostrando também o seu crachá.


Tadeu relaxou os ombros também, respirando fundo - O que você quis dizer com ela não gosta de luz? Nós só vimos bolhas na água.


A história que se seguiu não era esperada por João - mesmo com o histórico invejável de vivências extraordinárias - e muito menos por Tadeu. A bióloga contara com os olhos brilhando, em uma empolgação de invejar. Ela vinha há anos se especializando em espécies de animais da Mata Atlântica, mas há poucos meses atrás havia descoberto este terreno, que só aparecia como área protegida em documentos mais recentes. Um dia ela decidiu adentrar a mata para averiguar se haveriam espécies que ela não conhecia ainda.


- Você entrou ilegalmente aqui? - perguntou Tadeu.


- Vocês também, não? - ela retrucou, rindo - Fiquem tranquilos, nem cheguei na melhor parte da história.


Mara continuou explicando que em uma das suas noites de vigília na mata, procurando por novas espécies, ela ouvira um movimento no mangue e se escondera rapidamente para observar melhor. O que ela havia visto naquele dia era inacreditável, tanto que ainda tinha dificuldades em classificar: uma criatura, bem maior do que um jacaré, vivia naquele estranho lago. Ela nunca a vira por inteiro, mas seu rosto era similar a de um lagarto, lembrando um dragão de cômodo. Sua cor se assemelhava a de substancias radioativas, e cintilava quando o sol a iluminava.


Ao fim de sua história, os homens mal conseguiam piscar, e Tadeu por uns instantes até respirar. Tudo que eles sabiam daquele lugar era que possivelmente era utilizado pela empresa milionária BioQuimia para esconder algum crime dos olhares atentos dos órgãos ambientais. Tadeu que conseguiu falar primeiro, com os olhos arregalados para a bióloga.


- Será que eles sabem disso? Porque se soubessem, aposto que já teriam dado cabo no monstro…


- Ela não é um monstro, garoto, nós humanos que cometemos crimes monstruosos.


- Mara não está errada, Tadeu, justamente nos chamaram porque estes caras são criminosos, mas até agora ninguém conseguiu prendê-los. Eles compram a polícia, alegam que faltam provas, há meses estamos na cola deles - comentou João.


- Respondendo tua pergunta, é...? Qual seu nome mesmo?


- Eu sou o Tadeu - respondeu, lembrando de finalmente mostrar seu crachá.


- Tadeu, desde que venho aqui há algumas semanas, nunca vi ninguém à noite perto do mangue. O que me parece é que este terreno é só um quartel general diurno mesmo.


- Que bom. O que a gente precisa é coletar provas do que quer que esteja acontecendo aqui, mas agora precisamos tomar cuidado extra. Como vamos falar sobre este terreno se há um novo morador? - perguntou João.


O grupo foi interrompido por um barulho vindo do lago. Os três se aproximaram com cautela. Na superfície da água, as narinas da criatura sopravam, formando bolhas. Esta era a única parte de sua pele cintilante que ela mostrava naquele momento. João e Tadeu notaram então o brilho verde de sua pele. Quando ela se moveu para mergulhar, tonéis de aço vieram à tona, ficando a flutuar nas bordas da água lamacenta.


- Tadeu, veja! Temos a nossa prova. Olhe o símbolo dos tonéis, indicando substancia perigosa e radioativa! - falou João, com os olhos brilhando.


- É nisso que você repara? E aquelas narinas cintilantes? - sussurrou Tadeu, coçando a cabeça com força.


- Se vocês querem mesmo provas, terão que vir de dia. Os tonéis ficam muito mais visíveis porque aumenta a temperatura e o lago começa a borbulhar.


- É uma boa ideia, Mara, mas vamos precisar ter mais cuidado ainda - comentou Tadeu - Você virá conosco?


- Claro, eu que descobri a criatura - respondeu ela, com convicção.


- Combinado, então! Onde vamos nos encontrar?


- Eu sempre venho na direção oposta porque pode acontecer do vigia estar aqui, como está hoje. Na estrada do outro lado da mata tem um ponto de ônibus no quilômetro 170, podemos nos encontrar ali que fica mais fácil. E busquem estacionar os carros mais longe.


- Carro, moça? Estamos quase quebrados, viemos de ônibus mesmo - falou Tadeu.


- Fechado, então. Até amanhã. Venham preparados!

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No outro dia, os dois colegas saltaram do ponto de ônibus para aguardar a chegada de Mara. A bióloga em seguida saiu de trás de uma árvore, camuflada e pronta para a ação. Os dois sorriram ao vê-la, e rapidamente o trio se embrenhou mata adentro, chefiado por ela. A trilha era densa, com um caminho irreconhecível para quem o explorava pela primeira vez. Ela, porém, seguia confiante, a um passo ligeiro.


Após uma longa caminhada na mata tropical, o lago lamacento foi avistado. A bióloga, de súbito, fez sinal para os repórteres se esconderem atrás de uma grossa árvore. Na margem oposta do lago, mais próxima da casa, meia dúzia de homens formava uma fileira. Eles estavam separados em duplas, e os mesmos tonéis já avistados na noite anterior iam sendo despejados um a um para dentro d’água.


- Nossa, geralmente eles descarregam um por dia, desta vez estão batendo um recorde - sibilou ela.


- Você sabe o que tem dentro dos tonéis? - perguntou João, pegando a câmera da mochila.


- Nunca os vi abertos. Mas pelas roupas deles, é uma substância bem perigosa, como você comentou antes.


Os homens, que seguiam na tarefa de descarregar os tonéis, se assemelhavam a astronautas tal qual era a parafernália que utilizavam - roupas que serviam para proteger de radiação elevada. Toda vez que um tonel era descarregado no lago, a água borbulhava com intensidade crescente. Com o acúmulo de tonéis, o fervor era tão intenso que se assemelhava a um vulcão prestes a entrar em erupção.


Na medida em que cada homem terminava sua parte, logo retornava em direção à mansão, até que restara somente um. Ele havia retirado um binóculo do bolso e mirava em direção ao lago. De onde ele estava, porém, não era possível avistar o que o trio de investigadores visualizara no mesmo instante. João, vendo que o homem não os tinha percebido, seguiu tirando fotos dos tonéis – boa parte deles ainda visíveis na superfície.

- Gente, olhem lá. É o que estou pensando? Bem na nossa margem - murmurou Tadeu.


- Sim, é ela! Dá para ver pela cor - sussurrou Mara.


A criatura cintilante se encontrava na beirada do pântano, e lentamente se arrastava para fora da água. Sua pele estava encoberta pela lama que emergira do fundo após o agito. Ela se movimentava tal qual um lagarto, mas seu tamanho era três vezes maior do que o de um jacaré. Em suas costas se destacavam enormes placas ósseas em ambos os lados da coluna, como as de um estegossauro. Sua cauda continha dezenas de finos espinhos, como agulhas de acupuntura.


Mais próximo da mansão, o último dos homens havia ido embora. A criatura, mais próxima aos investigadores, os fez prender a respiração quando saiu totalmente do mangue, mostrando que era de fato muito maior do que um jacaré comum. Ao sair da água ela se sacudiu com força para retirar a lama que a encobria. Então, direcionou seu gigantesco corpo para a mansão. Ela utilizava dois chifres do alto de sua cabeça para retirar galhos do caminho, tomando o cuidado de não destruir as árvores do local.


- Ela parece um dinossauro radioativo - comentou Tadeu, dizendo o que todos estavam pensando.


- Magnífica, não é? - completou Mara. Nunca a tinha visto sair do lago, a quantidade extra de tonéis deve tê-la incomodado - Vamos lá?


- Vamos, consegui tirar umas fotos dela enquanto saía do lago - disse João, seguindo os colegas.


Os três avançaram a passos lentos, cuidando para não serem vistos. Sem perceber mudança no comportamento da criatura, eles continuaram até a lateral da cerca viva por onde Tadeu e João haviam caminhado no dia anterior. A criatura em nenhum momento olhara para trás, e não havia nem sinal dos criminosos nas redondezas.

Segundos depois, um grito pavoroso veio da direção do portão. Um grupo de homens estava bem em frente à mansão, conversando em roda. Ao avistarem a criatura, se espalharam formando uma fileira e empunharam as armas para sua cabeça, mirando-a amendotrados. A criatura então se ergueu nas patas traseiras, esticando as escamas das costas. Este movimento refletiu em sua pele cintilante, que brilhou com tanta intensidade ao ponto de cegar por uns instantes o grupo armado.


Neste momento, ela atacou. Virando o corpo a 180 graus, jogou sua cauda espinhenta contra a fileira dos homens armados, que foram cair próximos ao muro principal de entrada da mansão. O sangue dos que bateram direto contra o muro já escorria das paredes, enquanto os que caíram na grama tentavam se reerguer, sem sucesso. Neste momento, dezenas de tiros vieram de dentro da mansão, todos direcionados para o estomago da criatura.


Os três investigadores não pareciam saber o que fazer. Eles haviam permanecido na parte de trás da mansão, onde podiam avistar a criatura e alguns dos criminosos. Mara tentou interferir algumas vezes, sendo interrompida pelos dois jornalistas. - “O que podemos fazer? Estando mortos não poderemos provar nada” - sussurrou João, e ela assentiu, com olhar preocupado - “Espero que a criatura não se machuque…” - disse a bióloga.


Um urro assustador parecia mostrar o contrário, no momento em que a criatura foi atingida na barriga exposta por mais um ataque simultâneo de tiros ligeiros. Após alguns minutos desta tortura, em que os repórteres tiveram que segurar Mara novamente, a criatura caiu para o lado, inerte. Nenhum som mais saía de sua boca, tampouco sua respiração podia ser ouvida.


Mara caiu para frente, de joelhos, e Tadeu colocara a mãos nos olhos. João, entre os dois colegas, largara a câmera, passando os braços por cima dos ombros de cada um. Mara não se conformava, pensando: “não pode ser verdade, uma criatura tão magnífica, tão única, arrematada de sua existência pelo ego inflado de homens desalmados”. O silêncio predominou...

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Os criminosos, sem demonstrar qualquer sinal de piedade, trouxeram uma rede gigantesca e correntes de aço para prender a criatura. Observando isto, os investigadores sussurraram entre si - “Será que ela ainda está viva? Vão usá-la em experimentos, então? - falou Mara. Esta perspectiva era ainda mais desanimadora do que a morte - “Que crueldade, precisamos fazer alguma coisa!” – Tadeu complementou.


Antes dos colegas responderem, um ruído baixo começou a sair do peito da criatura. Os criminosos pararam por alguns instantes, observando. Este ruído rapidamente evoluiu para um grunhido, enquanto a criatura aos poucos se elevava nas patas traseiras. Ela jogou a rede para trás com a força do corpo e apunhalou com o rabo as vítimas que ousaram prendê-la. Sem tempo de qualquer reação da parte dos seus algozes, a criatura virou-se para eles, exalando fumaça das narinas:


- CHEGA! - e falou, em voz gutural e soturna, no mais perfeito português.


Neste momento, tanto os criminosos quanto os investigadores ficaram sem reação. A criatura sabia falar! O choque fora tão grande que Tadeu chegou a cair de joelhos, saindo do esconderijo e ficando exposto a todos. A criatura olhou de relance para ele, mas logo em seguida voltou a mirar os homens a sua frente. Uma parte deles se afastara, enquanto a outra olhava para o chefe, esperando respostas. Ela voltou a falar.


- Vocês, meus criadores, ousam levantar fogo contra mim? Há anos vem espalhando mal por esta terra, sem se importar com nada além do lucro. Por muito tempo eu estive adormecida, sendo incubada pela podridão que tentaram esconder. Vocês me transformaram no que sou, um ser que só conhece o esgoto e o que há de pior no mundo. Mesmo assim, pude sentir seres em minha volta buscando lutar contra o que vocês tanto tentam derrubar. Se ainda há quem queira mudar esta realidade, ainda há esperança.


Um homem alto, de terno e um bigode expressivo, deu um passo à frente, empinando o nariz e falando em voz alta e grave:

- Criatura abominável, se até agora vivemos livres para fazer o que quisermos, porque achas que vai conseguir fazer alguma diferença? O mundo está cheio de nós; mesmo que nos mate a todos hoje, outros virão.


- Pode até ser, mas da mesma forma que há homens como vocês, há também quem os espreita, quem os investiga. Vocês nem saberão, mas eles estarão lá, lutando, da forma que cabe a cada um dos que querem fazer a mudança - sussurrou a criatura, olhando tão discretamente para o trio de forma que os criminosos nem os notaram.


- Veja bem… - começou o líder, modificando o tom de voz como se falasse com uma criança - Quem sabe não negociamos? Podemos deixar você morando no seu laguinho, sem perturbação, e você não machuca mais nenhum de meus homens - sorriu, mostrando os dentes amarelos.


A criatura deixou soltar um barulho grave; Mara sussurrou que seria uma risada. Quando o som parou, o trio de investigadores notou um par de olhos escondidos na parte de trás de sua cabeça, mirando no grupo de capangas do líder que, sem fazer barulho, se aproximavam pouco a pouco pelas suas costas. Com os olhos visíveis para o resto do grupo focados diretamente no líder, ela falou novamente.


- E você acha que é no laguinho imundo que eu quero morar? – bufou ela, soltando uma fumaça branca das narinas - Eu sou assim pelo que vocês fizeram comigo, mas eu só acordei porque a força da natureza me chamou. O mangue gritou, clamando por oxigênio em meio às dezenas de tonéis. As árvores gritaram, pedindo pelo retorno dos animais voadores que se alimentavam dos peixes agora extintos. E, por fim, eu gritei.


O discurso foi finalizado em alto volume, uma vez que na medida em que ela ia falando, sua voz ia se ampliando. E, notaram os investigadores, a criatura foi erguendo cada vez mais seu corpo. Ao final da fala, abriu a mandíbula como um tiranossauro e investiu contra o líder, engolindo-o por inteiro. Sangue jorrou de sua boca, caindo por cima dos homens que tentavam em vão se aproximar. Apavorados pela perda de seu líder, eles saíram correndo em direção aos carros, deixando tudo para trás.

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- Onde eu encontro água? – A criatura perguntou, olhando para o trio como se nada tivesse acontecido. João sinalizou com a cabeça o interior da mansão, sem conseguir falar. Ela então assumiu sua forma reptiliana e foi rastejando nas quatro patas até a porta principal da construção.


- Vamos, preciso ver o que ela vai fazer - sibilou Mara, saindo do esconderijo e seguindo o trajeto da criatura. Os outros dois demoraram um pouco mais para agir, mas passo a passo foram em direção à porta, parando na entrada.


- Eu acho que prefiro esperar aqui fora, tudo bem? - perguntou Tadeu, prostrado em frente à varanda da mansão - Vocês sabem, alguém precisa contar a história se vocês morrerem.


Antes de João responder a criatura já estava de volta, lambendo o restante de sangue que ainda se acumulava nos lábios. Mara estava ao seu lado, sorrindo - Abri a torneira da banheira, foi mais rápido - A bióloga olhou admirada para a criatura - Você poderia nos contar como sobreviveu tanto tempo naquele lago? Adoraríamos ouvi-la, se estiver disposta.


A criatura meneou sua cabeça e foi rastejando até a entrada da casa, enrolando-se em volta do rabo como um gato, e sentando-se com a cabeça ereta. Mara não cessava de se impressionar como ela parecia estar sempre em constante mutação, adaptando sua forma conforme seu interesse. Até sua cor cintilante ficava mais discreta quando ela assim o desejava.


- No começo, foi como se eu estivesse presa em um local fechado, totalmente sem luz. Como os ovos das cobras que viviam ao redor do pântano, acredito que seja dentro de um tipo de ovo que eu nasci. Lembro que a casca rachou em um dia que ocorreu descarregamento intenso de tonéis. A partir daí eu subia à superfície com frequência, sempre na ausência de humanos. Mas eu vi você algumas vezes, Mara.


Ela enrubesceu. Estava sentada na escada com as mãos em cima do joelho, como uma criança que escuta uma história inédita e apaixonante pela primeira vez - Você já deve saber que sou bióloga, estudo a vida de todos os seres - mas minha especialidade é em fauna, ou seja, nos animais. Confesso que nunca havia visto um animal como você - se é que posso chamá-la assim.


- Prefiro que me chame de animal, criatura, ou o que for, desde que não me compare à raça que gratuitamente extermina a todas as outras espécies, inclusive a sua própria.


- Certo. Mas isso é incrível, sabe? Como você possui tanto conhecimento sobre nossa espécie, e sabe os nomes que atribuímos às coisas?


- Há mais mistérios entre o céu e a terra… - acrescentou Tadeu.


- É possível que um dia alguém venha a descobrir... Só posso dizer que tudo que eu ouvia e via era imediatamente absorvido, como se automaticamente o conhecimento fosse para o meu cérebro sem esforço nenhum.


- Nossa, a famosa absorção por osmose que eu queria tanto - comentou Tadeu, cutucando João como se tivesse feito a brincadeirinha do século. O colega deu um cutucão forte no colega em retorno.


- Continuando, eu me alimentava de qualquer tipo de espécie que tinha a coragem ou a falta de atenção de cair no lago, pois até hoje não havia visto necessidade de sair dali. Nunca precisei de muita comida, pois fazia pouco esforço naquele espaço contido. Este último despejo intenso de tonéis despertou algo em mim que eu não sabia que tinha, foi aí então que não suportei mais ficar lá dentro e decidi que era hora de ascender. Preciso confessar que a carne humana não me apeteceu muito, talvez eu jogue para fora este animal que engoli agora a pouco.


O trio se entreolhou, como que subitamente se recordando da cena surpreendente do chefão dos criminosos sendo comido de uma só vez pela criatura. Vendo que os investigadores demonstraram sinal de apreensão, ela se posicionou preparada para caminhar novamente.


- Sei que vocês têm medo também, mas tem menos medo porque já me conheceram melhor. E quem não tem medo do desconhecido? - falou ela, olhando para além do portão de saída.


- Como reagimos ao medo do desconhecido é o que forma quem somos - disse João, se levantando também.


- Vo-voce está indo? - perguntou Tadeu, ficando de pé e dando um passo para trás na escada da varanda.


- Sim, eu sinto um chamado. Posso ouvir meus ancestrais…


- Mas há tanto que eu gostaria de saber - sussurrou Mara, a última a se erguer.


- Sinto muito, pesquisadora da vida. Há certas coisas que precisamos ignorar, outras que precisamos supor. Há certos seres que devemos deixar livres… - A criatura se ergueu nas duas patas e fez uma espécie de cumprimento - Deixo-os agora, para contar a minha história da forma que lhes aprouverem. Acredito que nunca mais nos veremos, e não posso garantir que não irei esquecê-los. Porém, foi um prazer tê-los conhecido.


- Nós nunca a esqueceremos, pode ter certeza - falou Mara, fazendo uma mesura, e sendo imitada pelos outros dois investigadores.


Antes que o trio levantasse os olhos a criatura já rastejava na velocidade de uma cobra, indo na direção leste. Mara comentou que seria a direção do rio, o qual desemboca no oceano Atlântico. Os três ainda ficaram um tempo admirando-a, até que ela desaparecesse de vista. Tadeu já estava pronto para ir embora, quando João o puxou pelo braço.


- Onde pensa que vai? Temos esta mansão só para nós, precisamos recolher as provas do crime ambiental! E chamar os outros colegas.


- Ah, é - resmungou Tadeu, coçando a parte de trás da cabeça e seguindo seu chefe porta adentro. Mara pedira licença para sentar a escrever no seu caderno de anotações - Vai ser uma história e tanto - disse a bióloga.

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Algumas semanas depois...

O trio estava sentando em um bar à beira do rio, de onde conseguiam visualizar o encontro com o mar. Na mesa, junto a garrafas de cerveja vazias, estava a edição do dia de A Urna, jornal que empregava os dois colegas investigativos. Na capa, o título chamativo: “Empresa BioQuimia é impedida de seguir com escritório no país após descoberta de décadas de crimes ambientais envolvendo substância proibida no mundo todo”.


- É, fizemos um bom trabalho - falou Tadeu, bebendo um longo gole de seu copo.


- Com tantas provas naquela casa e mais as dezenas de tonéis no mangue, conseguimos chamar a atenção dos órgãos internacionais - complementou João.


- Ás vezes esta é a única maneira mesmo, ainda mais com uma empresa tão influente e poderosa. Até a prefeitura estava na jogada - comentou Mara.


- Só ninguém vai ficar sabendo do que realmente aconteceu - Tadeu se serviu de um punhado de batatas-fritas - Vão sempre achar que o chefe da gangue fugiu para Suíça.


- Foi o jeito, depois que mostramos as fotos para a polícia e nada da criatura aparecer, em nenhuma delas! Até hoje fico impressionado - revejo as fotos sempre para entender o que pode ter acontecido, nada muda. E os corpos que haviam caído no muro, quando saímos de dentro da mansão? Simplesmente desapareceram... - reiterou João, pegando seu copo de cerveja.


- Há mais coisas entre o céu e a terra... - sorriu Mara - Belo trio de investigadores do sobrenatural que somos, não é? Um brinde!


Os três ergueram seus copos e brindaram, bebendo a cerveja e mirando o horizonte. Pensavam onde poderia estar a criatura, sonhavam em um dia encontrá-la novamente. Talvez agora estando em seu lugar de direito, livre, ela até pudesse se transformar. Mas este seria um mistério para outro momento, quando nossa vã filosofia conseguir imaginar.


 
 
 

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