Há dias na vida
- Flora Simon
- 30 de abr. de 2022
- 5 min de leitura

Há Dias na Vida, por Flora Würth Simon
O sol já ia se pondo quando Renato adentra o apartamento, com os calçados nas mãos e segurando a respiração. Um olhar rápido pelo corredor o encoraja a seguir em frente. Passa pelo banheiro, pela sala, estava quase chegando, só mais alguns passos. A porta do quarto dos pais estava entreaberta, ele teria que ser mais furtivo aqui. Quase...
– Filho! Demorou hoje, hein? – disse um homem alto, de barba exuberante, ao sair do quarto mais próximo.
– Ah, oi, pai. Achei que estaria no happy hour – responde o jovem, coçando a nuca com uma das mãos.
– Hoje não quis ir, quero é te ajudar nos preparativos para a formatura, está chegando! Só mais quatro dias – responde o pai, com um sorriso de orelha a orelha.
– Não tenho muito o que preparar, pai, em nem sou da comissão.
– Mas e os convites, já chamou teus primos, teus tios? E sua avó?
O pai volta seu olhar para o par de sapatos e ergue uma sobrancelha.
– De novo, isto? Já esqueceu nossa última conversa? – Ele pega os sapatos da mão do filho e joga para dentro do quarto. – Te mexe logo, guri! Não vou pedir duas vezes.
Renato pula para dentro do quarto, bate a porta e se joga em cima da cama, apertando os olhos com as mãos para evitar as lágrimas que teimavam em escorrer. Ele ignora os gritos que se seguem e busca o violino debaixo da cama. Coloca o instrumento em seus ombros e começa o movimento. Sem encostar o arco nas cordas, ele mexe a cabeça e o corpo no ritmo da melodia que flui de seu peito. Segue assim por horas, ignorando as súplicas da mãe para que jantasse.
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Na manhã seguinte, Renato chega na mesa do café e por um momento acredita estar em um hotel: omelete, panquecas, pão de queijo, frutas diversas se esparramavam pela mesa, ocupando boa parte do espaço.
– Aí está! Eu morrendo de preocupação, seu pai falou que vocês brigaram de novo por causa da formatura, mas eu não entendo... – A mãe se aproxima dele e o beija na testa, depois o mira, cabisbaixa. – Tu estás prestes a realizar um sonho que nem eu nem seu pai conseguimos, e anda mais sumido do que nunca. Tinhas que estar celebrando, como os teus colegas.
– Tu não entende mesmo, mãe – Responde, se servindo das panquecas para não comprar outra briga em menos de 24h. – Eu já disse várias vezes, eu não quero seguir essa carreira. – Ele fala, baixinho, sem encará-la.
– Esta história de novo, é? Falamos sobre isto, música não vai te levar a lugar nenhum. Isso sem contar com os riscos de te envolver com drogas, com gente ruim. É para o teu bem, filho.
– Conversamos, ou vocês dois falaram e eu só escutei? – Ele engole o último pedaço que mastigava e se levanta, apoiando ambas as mãos na mesa. – Vocês não escutam.
Em passos largos e ligeiros, Renato sai pelo corredor e bate a porta de casa. A mãe o assiste e sacode a cabeça, olhar baixo e decepcionado.
Renato segue a passos largos em direção à loja de música, seu local preferido da cidade. O namoro era diário pelo Stradivarius exibido na vitrine. O dele foi o mais simples que conseguira comprar com o estágio, as horas intermináveis lendo processos e apoiando os advogados do escritório compensaram os momentos a sós com o violino. Quem sabe se ele conseguisse finalizar aquela música...
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Na noite anterior à formatura, seu pai iniciara mais um dos seus longos discursos sobre o futuro do filho.
– Tu pode seguir para o Direito de Família, este sempre tem futuro. É tanta história que a gente escuta por aí...
Renato come sem levantar os olhos, o gesto automático do garfo em direção à boca. A melodia de sua composição começava a tomar forma em sua cabeça.
– O bom é que daí tu tem várias opções né, filho? – completa a mãe, colocando sua mão por cima da dele.
“Há dias na vida que a gente pensa que não vai conseguir... Que é bem melhor deixar tudo e fugir”... A melodia ressoava perfeita, ele estava prestes a concluir. Sim, faltava pouco.
– Direito Tributário também é uma boa. O Zé, filho do Carlão, hoje mora em apartamento de três quartos com a esposa, diz que tem até piscina no condomínio.
– Ele se formou há uns dois anos atrás. Chegou a conhecer ele né, filho?
“Que outro mundo tudo vai resolver”. Que maravilha! A melodia estava pronta. Só faltava tocar.
– MOLEQUE, responde a sua mãe! – O soco na mesa faz os talheres de Renato caírem no chão. Ele arregala os olhos e pede desculpas.
– Eu estava pensando em amanhã, como vai ser. – Ele forja um sorriso.
– Amor, ele estava só distraído né, filho. – Ela levanta e passa a massagear os ombros do marido, fazendo um sinal com a cabeça para o garoto.
– É, ansiedade, já é amanhã. – Se levanta e recolhe os talheres – Vou aproveitar e ir dormir para acordar bem-disposto. – Sai da cozinha e em dois passos a porta já se escuta a tranca do quarto.
A cabeça já estava de volta na melodia. Ele já sabia o que fazer.
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Era a noite da formatura. O salão enchia com os pais e amigos dos formandos conversando em alto tom, a expectativa viva nos olhos dos formandos. Inclusive de Renato.
Os seus pais sentaram em uma das primeiras fileiras exclusivas, enquanto o restante da parentada se reunira mais ao fundo. A mãe roía as unhas e olhava com frequência para trás, enquanto o pai não parava quieto na cadeira. No salão menor logo ao lado, Renato conversava com uma das organizadoras do evento.
A formatura começa, o silencio impera no salão quando o mestre de cerimonias inicia sua fala. Os formandos são anunciados e a salva de palmas pode ser ouvida da rua. Na sequencia, todas as etapas seguem conforme o planejado: chamada dos formandos, homenagem aos pais – muito choro da parte dos parentes do Renato – discurso dos oradores, discurso dos paraninfos e demais representantes, mais choros, balões, hino de encerramento, chapéus para o ar, alegria. Na despedida, os formandos saem um a um do salão pela porta indicada, para recepcionar os parentes na parte externa e seguir com as fotos. Todos, menos Renato.
Ao ver que os pais ainda estão confusos na medida em que o salão se torna silencioso, Renato puxa seu violino de segunda mão de trás da cortina lateral. Com um olhar nunca visto pelos pais durante os anos de faculdade, ele desta vez toca o arco nas cordas e solta a melodia do peito.
“Há dias na vida que a gente pensa que não vai conseguir Que é bem melhor deixar de tudo e fugir Que outro mundo tudo vai resolver”...
As cortinas começam a se fechar. A mãe, cega pelas lágrimas, puxa o pai em direção ao palco. A melodia segue, mais aguda, mais intensa. As lágrimas do filho caem pelo instrumento. O pai deixa o muro para trás, a mãe esquece o medo. Chega o refrão, a cabeça em movimento, o corpo todo em total harmonia. Os olhos se encontram, nada precisa ser dito. A última nota se encerra com o fechamento da cortina.
Flora, um excelente texto para prevenção de suicídio na adolescência. A letra da música é um grito de socorro. Muito, muito bom! Parabéns!