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A saída inesperada

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 16 de jun. de 2022
  • 6 min de leitura

Este conto é uma homenagem ao de Lygia Fagundes Telles, Venha ver o pôr do sol (leia aqui: https://contobrasileiro.com.br/venha-ver-o-por-do-sol-conto-de-lygia-fagundes-telles/). Para ter a experiência completo, sugeri que leiam primeiro o conto dela, depois leiam o meu. Ambos funcionam sozinhos, mas é para se divertirem buscando as semelhanças e diferenças. Boa leitura :)

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A saída inesperada

Um grupo de crianças brincava de pique-bandeira na grama esverdeada, os ecos dos gritos ressoavam por quadras a fio. Raquel andava sem pressa do outro lado da rua, encoberta pelas sombras das espessas árvores. Mais alguns passos pelo túnel verde e ela não podia mais ser vista. Seguia resoluta na direção oposta ao parquinho, por uma trilha invisível.


Os passos iam certeiros, silenciados pelo tênis confortável e pela roupa simples de ginástica. Ela não precisava do caminho para encontrar o destino. O sol já ia baixando, por trás dela, os raios passando entremeados por trás das árvores e atingindo o chão de terra.


Ao final da trilha, lá estava ele e, segundos depois, em seus braços. Ele a levanta acima do chão e aperta com força, no que ela não responde de início. Ao soltá-la, ela esboça um sorriso tímido e pisca os olhos lentamente, encarando-o.


- Você está linda como sempre! Não mudou nada... – Ele não conseguia conter a excitação, tocava-a com freqüência nos ombros, na cintura, no rosto delicado.


- Obrigada. – Por uma fração de segundos, uma sombra passa em frente aos seus olhos, mas logo estavam de volta o sorriso e o olhar gentil – Eu estava com saudades.


- E eu, nem acreditei na sua ligação. Já faz uns bons meses, não sabia onde você estava. Tentei te procurar, liguei para todos os seus telefones, procurei os e-mails, redes sociais. Você desapareceu, Raquel.


Ela suspira e o pega pela mão, mostrando um arco antigo incrustado na rocha, parcialmente encoberto por heras esverdeadas. Poucas pessoas na cidade tinham memórias deste lugar, duas delas olhavam sem piscar, de mãos dadas, sem conseguir dar o primeiro passo. Até que Raquel tomou a frente.


- Eu sei, é que eu fiquei muito abalada. Nunca poderia imaginar que você teria lugar para outra na sua vida, após tudo que passamos juntos. Pensei que me amava. E então precisei ir. – Ela começa a andar de costas para a entrada, e sinaliza com a cabeça.


- Raquel, aquilo foi um erro, você sabe que sempre foi a única da minha vida, a única que importa, a única que eu faria qualquer coisa. Tanto que fiquei aqui, no fundo eu saberia que você voltaria, por sentir o mesmo por mim. – Ele dá um passo para frente e a segue, passando por baixo das heras e adentrando um túnel escuro.


A sombra volta aos olhos de Raquel, que por um instante aperta com mais força a mão dele. Logo em seguida, ela pisca os cílios de forma delicada e molha os lábios – Eu sinto o mesmo, por isso que quis te trazer aqui, ao nosso lugar. Você lembra? – Acaricia sua mão e segue por mais alguns segundos; o pouco de luz que penetra do pôr-do-sol ilumina a rocha dos dois lados. No centro do caminho, um trilho envelhecido pela ferrugem despontava.


- A mina sempre foi o melhor lugar para fugirmos. Depois de todos estes anos, até que não mudou muito, né? Só está mais escura e solitária ainda. – Ele sorri, e puxa-a com força para um novo abraço, desta vez a mão escorregando para os quadris. – É um ótimo lugar para ficarmos a sós.


O corpo dela estremece por um segundo, mas em seguida ela entrelaça as mãos com a dele e o afasta, com cuidado, olhando–o nos olhos. – Sim, aqui ninguém podia nos ouvir, sempre foi o lugar perfeito para fazer o que a gente queria. – Sorri, indicando o caminho em frente – Só tenha calma, temos muito tempo. Vamos mais para frente um pouco, quero te mostrar um lugar especial. É o melhor pôr-do-sol que você vai ver na vida!


- Você me deixa louco, Raquel – Lambendo os lábios, suspira e a segue novamente. – Lembro de que o sol entrava até certo ponto, devemos estar perto, né?


- Estamos sim, só que agora é diferente, com as heras encobrindo parte da entrada. O pôr do sol fica ainda mais lindo, iluminando a saliência da rocha e criando um aspecto incomparável.


- Eu acredito em você, Raquel. Na verdade sempre acreditei, sempre quis que a gente ficasse juntos para sempre. Você que não quis. Foi embora atrás de outro, não foi? – Ele aperta a mão dela, o sorriso transformado, as costas retesadas.


- Eu... – Ela suspira, e uma lágrima escorre dos seus olhos. – Não foi isso que aconteceu. Eu fiquei confusa, sabe? Você, com outra.


Ele solta as mãos dela, e a olha com carinho. – Raquelzinha, meu amor, por favor, não chore. Não suporto te ver triste... Sou louco por você. Louco, você sabe, faria tudo, tudo.


- Eu sei, meu amor – Ela faz um carinho no seu rosto. – Por isso quis trazer você aqui. Vem, a surpresa está quase lá.


Eles dão mais alguns passos, juntos, fazendo uma curva leve para a direita. No ângulo em que se encontravam, os últimos raios de sol batiam no topo da caverna, mas nada podia ser visto aos pés deles.


- Lembra do nosso cantinho? Eu preparei com todo o carinho. Tem uma cama toda especial para nós. Tome, aqui está uma lanterna, dá uma espiada. – Ela ilumina um buraco ao chão com uma escada; ao fundo do buraco, destacava-se o pedaço de uma cama, coberta com rosas vermelhas


Ela entrega o objeto e ele sorri, mordendo os lábios. Colocando a lanterna na boca, vira-se de frente para ela e começa a descer os degraus. - Você é cheia de surpresas mesmo, Raquel! Nosso cantinho. Quantas noites de amor tivemos por aqui, não é mesmo? Longe de todos, com toda a privacidade do mundo.


- Está certíssimo, meu amor. Hoje teremos ainda mais privacidade, já que a mina está há mais de dez anos desativada. – Ela joga o corpo para frente, inclinando-se e tocando a mão em uma grade, que estava aberta para o outro lado do buraco.


- E esta grade aí? – Ao final do caminho, balança a lanterna na tentativa de ver a saída – Não lembrava dela, é novidade?


- É sim, meu amor, mas não se preocupe. Não vai nos atrapalhar – Com um estrondo, ela baixa a grade e prende-a com um grosso cadeado em uma argola que havia no chão, cobrindo toda a entrada.


- Amor, o que é isto? Só pode estar uma brincadeira, né? Vamos logo, estou doido de tesão. – Ele eleva o tom da voz – Vem logo!


Ela sorri, desta vez de orelha a orelha, e levanta as sobrancelhas – Nunca mais, seu idiota – Ela começa a arrastar uma tábua de concreto, até então escondida pelas sombras, por cima da grade – Você acha que eu ia te deixar me tocar depois de tudo que me fez? Que eu realmente podia te amar depois de meses de tortura?


Ele coça a cabeça e levanta a outra mão – Mas, ei, Raquel, uns tapinhas de amor é normal, né? Você tá realmente falando daquilo? Vamos logo, para de brincadeira. – Ele segue em alto tom, esganiçado, e começa a subir de volta pelas escadas.


Ela ri alto, os olhos arregalados, o corpo todo em vibração – Alguns tapinhas, seu desgraçado! Você me perseguiu! Tive que apagar toda a minha vida para poder ficar longe de você. Achando que EU traía quando VOCÊ ficava com todas as mulheres da cidade! – Raquel soltou a respiração e, com um esforço final, empurrou a boa parte da tábua que faltava para cobrir o restante da grade.


Ele tentara em vão colocar as mãos por trás das grades para impedi-la, mas já era tarde demais. Os últimos raios de sol agora iluminavam diretamente seu rosto.


- Que tal o pôr do sol mais lindo do mundo? Nunca verei um mais incrível em toda a minha vida – Em um rompante, ela empurra o restante da tábua, fechando completamente a entrada do buraco. Os gritos ficaram abafados, lamentos inúteis. Com outra lanterna que tirara do bolso, ela ilumina seu caminho de volta. Ao chegar à porta, não se podia mais escutar nada.


Após finalizar o caminho da mata, conhecido por poucos, o único som audível vinha das crianças saindo do campo, cansados após uma divertida partida de pique bandeira.

 
 
 

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