Os dois lados da moeda
- Flora Simon
- 6 de out. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 23 de out. de 2020
Durante a terceira guerra mundial, o Brasil sofre um ataque inesperado. Os recursos naturais, antes vastos, estão agora escassos. Aqueles que conseguiram escapar da morte seguem lutando pela sobrevivência.
Mateus se revira na cama, tentando enganar o tormento que insistia em voltar, mas o barulho do próprio ronco o acorda do que seria, ao máximo, uma soneca. Ele se levanta e dá dois passos até o armário do estoque, abrindo a porta pela milésima vez. Mais um passo e chega na cozinha para pegar um copo de água, quem sabe assim a fome melhoraria.
- Madrugando novamente, amor? – pergunta uma mulher de porte elegante, chambre aveludado e pantufas de lã.
- Estou bem preocupado, querida. Pelos meus cálculos temos só mais uma semana de alimentos, vamos precisar sair – responde ele. Vestia também um chambre, de seda azul escura, e usava confortáveis chinelos.
Ela se acomoda junto à pequena mesa de jantar oval no centro da cozinha, e suspira. Não consegue parar de pensar no primeiro dia do ataque nuclear, a memória daquele momento lhe parecia tão aterrorizante quanto a ideia de serem obrigados a deixar o lar temporário. Um novo suspiro e ela começa a se recordar...
Na tarde daquele fatídico dia, ela tomava sol na piscina da mansão deles, enquanto o filho adolescente nadava. As últimas notícias eram boas, as tropas inimigas estavam em vias de rendição, e tudo logo ficaria bem. Quando ela estava prestes a cochilar, o marido chegara correndo da casa, segurando seu celular.
- Maria, eu soube de primeira mão do mais alto escalão do governo. Eles só estão contando para quem tem os acordos. Vamos, rápido, temos menos de 5 minutos! – gritara ele, e logo após correra para a piscina chamando o filho.
Ela rapidamente obedecera, afinal, já tinham descido ao bunker ao menos duas vezes desde o começo da guerra. Em pouco tempo, os três se encontravam protegidos no subsolo, onde haviam sentado na mesa de jantar e aguardado.
Em questão de segundos, tudo em que Maria até então acreditava caíra por terra. O barulho da bomba fora tão ensurdecedor que ela se perguntara se o bunker resistiria, mas a visão do filho e do marido ainda intactos a fizera respirar aliviada. Já haviam se passado três meses daquele inferno, mas a memória estava fresca como água potável...
- Maria? – indaga Mateus, acordando-a do seu devaneio.
- Ah sim, sim, querido. Se não tem jeito, vamos ter que sair né? Pegar as armas, o resto da comida. Mas vamos dormir primeiro, sim? – completa ela, se levantando e abraçando-o por trás – Precisamos descansar para pensar melhor amanhã. – Os dois caminham lentamente para o quarto.
A poucos metros dali, um grupo menos privilegiado se esforçava para pular o muro da mansão. Uma mulher, de olhar determinado, observava os arredores, enquanto um homem, de olheiras cavernosas, contava com a ajuda de dois adolescentes para montar uma escada improvisada com tocos de árvore.
- Acho que já temos o suficiente para escalar – fala o homem. – Espero que você esteja certa, Rute, pois o risco aqui é alto. Só de pensar...
- Fica quieto José, eu ouvi direto da fonte, essa casa aqui tem uma caixa d’água que vale para um ano, no mínimo – responde ela.
- Outro motivo para vocês pararem de discutir e andarmos logo com isso, se o Pedrada chega antes a gente vai pra cova sem dó – fala o adolescente mais velho, olhando nervoso para as próprias costas. O garoto estava sujo tal como se tivesse vindo direto de uma mina de carvão.
A outra adolescente era o contraste do colega, tinha uma aparência aprumada e os cabelos presos em um coque alto. Após posicionar o último toco, ela faz sinal de positivo e rapidamente eles começam a subir. José, o último do bando, estica uma corda que já estava presa em uma árvore do lado de fora do muro. Com ela, todos conseguem descer com tranquilidade.
- Lembrem-se do plano. Vocês duas ficam aqui de vigia e eu vou com o Tiago buscar o alvo. Atirem em qualquer coisa que se mover.
A garota faz que sim com os ombros, sacando o revólver da cintura. Rute revira os olhos mas concorda com a cabeça, alisando a metralhadora. Os dois homens iniciam a busca, contornando os destroços da mansão. Sabiam exatamente onde procurar; a pista de Rute era quente.
No bunker, Maria acorda de sobressalto. Sabia que o marido nunca dava bola para os instintos dela, mas não conseguia se lembrar de alguma vez em que estivesse errada. Decidida, deu alguns passos até a sala de controle, se é que poderia se chamar assim, para observar a câmera de visão externa que tinha sobrevivido à explosão.
Seu rosto empalidece quando vê duas pessoas se aproximando do esconderijo da caixa d’água. Era a primeira vez que ela via alguém pelas câmeras... Sempre tinha se sentido segura com o muro, a única parte da moradia que não havia sido destruída, além do bunker e, claro, a própria reserva de água. Piscando novamente para conferir se era verdade, corre para chamar o marido.
- Tem alguém lá fora, querido! Nunca tinha visto ninguém – sussurra ela.
- Maria, é o resgate? Finalmente! – exclama ele, pulando rapidamente da cama.
Ao ver a expressão assustada da esposa, fecha a cara. O filho vem correndo do outro quarto, e, sem tempo para explicações, Mateus puxa a família até a sala.
- Peguem as armas. Precisamos averiguar.
- Mas por quê? Não, nós estamos seguros aqui! – reitera a esposa – Não tem porque sairmos e nos arriscarmos...
- Mãe, a gente precisa sair, a comida está acabando! – resmunga o adolescente.
- Quem disse que essas pessoas são do bem? E se forem assaltantes? Ou assassinos?! A gente não sabe nada do que aconteceu lá fora... – ela tenta argumentar.
- Eu vou então e vocês ficam – grita ele, encarando a mulher – E ponto final.
Cansada de rebater, Maria abaixa a cabeça e suspira, sentando-se à mesa oval. O filho coloca a mão no seu ombro, e a acaricia. O marido olha para a câmera de vigia, mas os desconhecidos não estavam mais visíveis no painel. Ele se arma com as granadas e o revólver e corre para a saída.
O barulho de explosão do outro lado da mansão foi suficiente para as mulheres decidirem agir. Rute sabia que eles não haviam levado nenhum tipo de arma para causar este tipo de estrondo, então bom sinal não era. Ela ri para si mesma, refletindo por uns instantes.
Embora já estivesse farta de ser deixada para trás nas pilhagens, achava vantajoso parecer inferior quando circulava pela caverna. Pedrada e sua gangue tinham certeza de que ela não apresentava risco para o grupo, motivo pelo qual deixaram escapar a pista quente da água potável. Já José sentia tanto medo que buscava ficar o máximo possível longe, preferindo viver na periferia e passando fome para evitar topar com o chefe.
Determinada, Rute faz um sinal para Sara, a garota aprumada, e elas avançam, agachadas, na direção do barulho. Ao chegarem, ainda se mantendo escondidas, avistam uma cratera separando José e Tiago de um magrelo limpinho do outro lado. O ricaço trocava a mira de um para outro, indeciso, o suor escorrendo pela testa.
- Soltem as armas! – grita Mateus. – Tem quantos mais de vocês? – pergunta.
- É só a gente – começa Tiago – Nós viemos pa...
- Cala a boca, garoto! – sussurra José – Não queremos machucar ninguém, patrão, só fazer um empréstimo.
- Mas o que querem aqui... – começa Mateus – Vocês... vocês tem comida? – questiona, os olhos brilhando de ansiedade.
O diálogo segue por mais alguns minutos, sem aparentar resolução. Enquanto eles não tiravam o olho de um para o outro, Rute congela ao ver vultos escondidos nos arbustos, do outro lado da cratera. Pedrada estava ali com seus comparsas. “Só podem ter ouvido a explosão, eles têm ouvidos por toda a região”. Ela rapidamente faz um cálculo mental, fazendo um sinal para Sara. As duas, escondendo-se entre os escombros, caminham lentamente até as costas de Mateus.
Maria as vê se aproximando e decide que era hora de agir. Ela abre somente uma fresta da porta do bunker, o suficiente para ver os pés das mulheres bem ao seu alcance. Com um pé de cabra, ela derruba Rute e a puxa com força para baixo, impulsionada pela adrenalina. Sara não hesita e pula para dentro do bunker atrás da mentora.
- O que, sua desgra... – começa Rute, mas Maria não a deixa continuar e acerta seu maxilar com o pé de cabra. A força é o suficiente para que ela caia sentada no chão. Enquanto isso, Sara tenta gesticular para Maria de forma desesperada, aumentando a velocidade dos gestos quando Lucas parece reconhecer seus sinais.
- Mãe, mãe... presta atenção – sussurra ele, se juntando à Maria. – É linguagem de sinais, ela disse que um homem terrível chefe de uma gangue está lá em cima, prestes a matar o pai e os amigos dela!
- Que?! Rápido, o que podemos fazer? – solicita ela a Sara, contando com a ajuda do filho. Rute resume ao máximo a situação e Maria compreende que o maior perigo se escondia no mato, a poucos metros dali.
- Temos pouco tempo – sussurra ela, massageando o rosto – Precisamos de um plano – As três se reúnem junto à mesa oval no centro da cozinha, enquanto Lucas fica de olho na câmera principal, onde ainda é possível observar o pai.
Nos arbustos, Pedrada faz sinal para os comparsas avançarem. Sentia tanto ódio que os ombros tremiam e a veia da testa pulsava. Aquele sarnento do José achava que podia enganá-lo, com certeza devia ter mandado o moleque espiar as conversas sobre a caixa d’água dos ricaços. A vontade era de estripá-lo lentamente com uma faca de açougueiro, mas o ricaço da granada o deixara indeciso sobre como agir.
Os comparsas estavam de olho nele, tensos, tentando entender a demora do chefe. Sabiam que com aquele olhar não ia sobrar para ninguém. Mas Pedrada não queria era arriscar perder o bem que eles vieram buscar...A bazuca seria a melhor opção para acabar logo com aquilo, mas além de arriscar perderem a água, ele perderia o gosto de rachar o crânio de José com as próprias mãos, depois, claro, de explodir os miolos do moleque na frente dele.
Saindo do bunker e rastejando por trás das pedras do terreno, uma dupla improvável observa todos os movimentos de Pedrada e sua gangue. O sol as favorece, com a sombra das árvores ao redor caindo diretamente sobre seu esconderijo. Vendo que nada mudara no impasse entre Mateus com José e Tiago, elas seguem por mais alguns metros.
Maria treme de ansiedade, mas sente uma adrenalina nas veias que há muito não se recordava. As aulas escondidas de tiro ao alvo viriam a calhar... E Rute parecia saber muito bem o que estava fazendo, segurando a metralhadora com confiança. Nesse instante a colega sinaliza para ela, e as duas se agacham entre algumas pedras, encontrando buracos para encaixar o bico das armas.
Segundos se passam e as árvores do bosque se tingem de vermelho. Pedrada não parece entender o que o atingiu, mas quando Rute e Maria saem de trás do esconderijo ele só tem tempo de arregalar os olhos, antes do último suspiro. Pegos de surpresa, os homens do bando caem um a um, e as mulheres só param de atirar quando não percebem mais movimento.
O trio do impasse não podia acreditar. O inimigo em comum estivera próximo dali e eles, distraídos com a indecisão. Mateus parecia tão chocado com a esposa que cai de joelhos e bota as mãos na cabeça. José não sabe se ri ou se chora, devido ao desfecho imprevisível. Já Sara, Lucas e Tiago correm a abraçar as heroínas. Não havia mais motivo de impasse; os caminhos, outrora contrários, agora se uniam no fim da estrada.
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