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Pesadelo fora das telinhas

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 29 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 2 de fev. de 2021

Uma homenagem a uma certa peça gaúcha

O relógio despertou às 7 horas da manhã, com a voz do locutor anunciando as notícias do dia. Tina se revirou na cama à procura do botão, sem sucesso. Na rádio começou a tocar “Eduardo e Monica”, um dos hits de 86. Enquanto a garota ainda tentava se levantar, entrou no quarto uma mulher com um vestido branco com bolinhas vermelhas, e apertou os pés da filha.


- Acorda, dorminhoca! Tu vais perder tua carona.


- Tá, mãe, to indo - Tina se levantou, com esforço, e puxou da gaveta o uniforme da escola.


Ao chegar à cozinha, encontrou o jornal no mesmo local de sempre, em cima da antiga mesa de cabeceira de seu pai. Já fazia tanto tempo, mas a mãe insistia em manter as tradições. Servindo-se de suco de laranja, Tina pegou o jornal e foi ler na cozinha. Ela abriu em sua página preferida: as estreias do cinema Coral. Seus olhos pararam no título A Hora do Pesadelo – um filme sobre um assassino que atacava enquanto as pessoas adormeciam. Intrigante.


“Nossa, este é bem o tipo de filme que o Juca vai gostar. Vou levar o jornal pra escola” – falou, baixinho para si. Apressando o passo, desceu as escadas rapidamente em direção ao carro que já a aguardava em frente à casa. Juca, o irmão mais velho de sua melhor amiga Lina, costumava sempre dar carona, pois a escola fazia parte do seu caminho para a faculdade. Tina tinha uma queda escondida por ele, mas nunca iria admitir.


- E aí, Tininha! - falou ele, logo que ela sentou no banco de trás - Tudo em cima?


- Tudo - respondeu ela, sorrindo.


- Oiii, amiga - Lina virou para o banco de trás, sorrindo de volta - Qual a boa de hoje? Tu tá com uma cara diferente.


- Ah, sim! Juca, hoje vi que estreou um filme de terror no cinema, bem daquele tipo que tu gosta. Posso deixar o jornal contigo.


- Da hora, Tina! Eu vou olhar sim – respondeu ele, piscando para ela pelo espelho.


Alguns minutos depois ele já havia deixado as garotas na escola. As duas, atrasadas, deram passos ligeiros para não perderem o sinal. Tina não conseguiu se concentrar o dia todo, pensando no sorriso que Juca direcionara para ela. Ao que tudo indicava, o cinema estava de pé... Claro que ela ia ter que enganar a mãe sobre o tipo de filme que iriam assistir.


Ao tocar o sino de encerramento das aulas, de novo Juca passou para buscá-las. No banco do carona estava outro rapaz, vestido tal qual o Paulo Ricardo, da Radio Pirata. Lina disfarçou uma risadinha, enquanto Tina escondia seu nervosismo.


- Prontas para ver o tal Freddie Krugger? – cumprimentou Juca.


- Sim – o coração de Tina saltara com a perspectiva – Só vamos passar rápido em casa, preciso avisar minha mãe, senão...


- Que careta, tem que avisar a mamãe – zoou o tipinho Paulo Ricardo.


- Deixa ela, cara – defendeu Juca – Elas são mais novas, lembra? – reforçou ele, calando o amigo imediatamente. Tina estava roxa de vergonha no banco de trás, enquanto Lina parecia menos interessada no bonitão.


A parada na casa de Tina foi rápida, uma leve mentira de que iriam assistir Labirinto – filme que já tinham assistido em outro dia - e logo o quarteto já estava na entrada do cinema. Munindo-se de toda a pipoca que conseguiam carregar, eles correram para pegar o canto mais de cima, longe das outras pessoas.


Durante o filme, Tina tentou relaxar e curtir, mas desde o começo não conseguia piscar. O som das unhas de Krugger raspando as paredes a faziam levar as mãos às unhas com frequência. Ela suava tanto que seu penteado já começava a se desmanchar, a franja grudando na testa. Ao final do filme ela nem quis saber muito de conversa, embora os colegas não parassem de comentar.


- Jesus Cristo, que medo! Imagina alguém vir te pegar no sono? – comentou Lina.


- Eu achei o cara meio cafona, isso sim.


- Pode crer, Tobias. – respondeu Juca.


- Me levem para casa? Não estou passando bem – cortou Tina.


Diante da expressão e da palidez da garota, os outros três não argumentaram muito e a deixaram com segurança em casa. Chegando lá, porém, ela não conseguia parar de tremer. Sua mãe já estava dormindo, então ela tomou uma ducha rápida e se deitou na cama, com todas as luzes acesas. Não queria dormir, porque isso poderia significar ser pega pelo Freddie. E se ela morresse que nem a Tina do filme, sendo cortada com aquelas facas?


Ela enrolou o máximo que conseguiu, mas após um tempo acabou pegando no sono. E com o sono, vieram os pesadelos. Ela sonhou que estava em sua mesma casa, mas havia algum barulho nas ruas que ela não conseguia reconhecer. O barulho era tão alto que ela não notara a presença de um homem mais velho, com a cara queimada pelo fogo, trajando camisa xadrez e chapéu marrom.


Dentro do sonho, ao encará-lo, percebeu que era o Freddie Krugger – ele estava vindo matá-la! Tina saiu correndo do quarto, desviando-se do assassino com bastante agilidade, e gritando porta afora pelo pai. Na rua o barulho aumentara, era de um veículo que ela não conhecia. Ao chegar à sala, viu seu pai e respirou aliviada. A cara dele, entretanto, era de pura tensão.


Na porta, meia dúzia de policiais altamente armados entravam um por um, circundando o pai dela e gritando ordens e perguntas sem sentido. Tina não conseguia entender, precisava avisar a todos que o Krugger estava vindo – os policiais poderiam ajudar! Mas não eram quaisquer policiais, ela notara. Estes tinham um uniforme diferente, meio camuflado. Militares.


Ela de repente baixou o olhar e se lembrou. O pesadelo remetia àquela noite, quando ela tinha somente 3 anos, e seu pai fora levado por militares do governo Médici. O AI-5 estava em alta e aqueles que eram na oposição vinham sendo recolhidos pelos bairros. Tina, no presente, acordara gritando. Sua mãe veio correndo e elas ficaram abraçadas, chorando juntas. Naquele dia completariam 14 anos desde que seu pai bailara na curva, e nunca mais voltara.


 
 
 

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