top of page

Por trás das lentes que desfocam

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 18 de out. de 2020
  • 2 min de leitura

Flora Würth Simon


Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos

Clarice Lispector



O dia começa e, sem nem ao menos lavarmos o rosto, os dedos já escorrem para abrir o aplicativo. A garantia de que nenhuma conversa foi perdida durante as horas de sono é essencial para que a manhã possa continuar. Uma rápida atualização, já é hora de levantar para um café. Vamos até a cozinha, o celular apoiado na mesa, e começamos os preparativos. O tempo passa mais lentamente, tudo transcorre como sempre. Antes de começar a trabalhar, porém, é preciso conferir o que os outros andam fazendo.


Abrimos o outro aplicativo, aquele das fotos com sorrisos, é preciso se atualizar. Logo aparece aquele café com desenho de coração, acompanhado de um cookie de propaganda de margarina. Desce mais o Feed, uma roda de bicicleta em frente a uma paisagem bucólica. Mais para baixo, o músculo perfeitamente torneado, a perna em perfeita posição para o destaque. Seguimos em frente, é o casal sensação, brilhando na luz favorável.


Fechamos o aplicativo, é hora de começar a trabalhar, há muito caminho pela frente para alcançar tamanho sucesso. Não temos tempo a perder. As horas voltam para sua lentidão regular, o serviço segue de forma normal até o almoço. Este é o intervalo perfeito para uma espiada novamente, afinal, algo pode ter se perdido neste período. Ao abrirmos o aplicativo, o relógio acelera e quase não dá tempo de finalizarmos a refeição.


A tarde chega, é hora de cumprirmos as metas de trabalho. Algumas horas transpondo dados, outras escrevendo relatórios, uma videoconferência para atualização; o relógio vai batendo até o encerrar do ponto. Todo este tempo sem abrir o celular, com certeza algo se perdeu. Uma ducha rápida ao por do sol, corremos a espiar as novidades. O aplicativo traz novos sorrisos: veja quantos comentários na foto do casal sensação! E lá vem o pessoal fitness do final da tarde, o bíceps bem posicionado, o tênis de corrida contrastando com o fundo da selva de pedra.


Com um suspiro nós fechamos o aplicativo, pensando se algum dia iremos alcançar esta infalível perfeição. Este tempo que voa parece apagar da memória que tudo não passa de ilusão, que estes fake sorrisos muitas vezes duram o tempo de um clique. O que fazemos nós por trás das câmeras? O anoitecer parece trazer de volta a verdade. Se a vida fosse somente os ângulos perfeitos e os rostos iluminados, não haveria tempo para a realidade. O dia acaba, fechamos todos os aplicativos. É hora de sonhar.

 
 
 

1 Comment


bru.sanguinetti
Nov 04, 2020

Amei Flo! Ficou muito lindo (e triste) o teu texto, bem poético!

Like
Post: Blog2 Post

Formulário de inscrição

Obrigado(a)!

©2020 por Flora Würth Simon - Escritora. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page