top of page

Sombras do passado

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 4 de nov. de 2020
  • 3 min de leitura

ree

Os seus passos eram o único som que podia ser ouvido no imenso vazio das ruas desertas. Na medida em que ela caminhava, seu coração batia descompassado, o ritmo em sintonia com o avançar do salto alto. A meia fase projetava sombras pitorescas que poderiam enganar até o mais tranquilo olhar. Uma rápida espiada para trás e logo ela seguiu o seu caminho; o batuque do som unificado ecoava pela quadra. Sua única companhia era a lembrança do pesadelo estarrecedor.

Os dedos cutucavam sem cessar no inútil e inerte objeto retangular em suas mãos. A esperança de que por um acaso a sua luz fosse novamente acender é o que a mantinha no apertar constante. “Justo nesta noite sem lua, tão parecida com aquela vez” – pensou. Seus dedos suavam enquanto novamente olhava para a estúpida máquina sem bateria. Desistindo, jogou-o na bolsa e passou a roer as unhas, focando o olhar na quadra seguinte.

O fim da penumbra foi substituído pela claridade extrema de uma grande avenida, em que os faróis dos automóveis a cegavam. Ela suspirou, atenta, mirando para ambos os lados. “Ao menos aqui é bem iluminado...” – e seguiu seu andar cadenciado. Na próxima rua, porém, um forte cheiro de álcool adentrou suas narinas. Uma porta foi aberta e dela saíram meia dúzia de jovens beberrões com fantasias mirabolantes, dignas de noite de Halloween.

Ela parou e puxou novamente o celular da bolsa, olhando por um instante e logo o jogando de volta com força. Soltando um riso angustiado, levou sua mão à cabeça e a balançou de um lado para o outro. “Claro, todos do escritório saíram cedo para o maldito happy hour deste dia dos infernos.” – resmungou em voz alta. Por outro lado, a recente constatação desacelerou o passo do seu coração. A probabilidade do evento daquela noite se repetir diminuía a cada nova quadra vencida.

Na próxima ruela, o eco das vozes alegres diminua a cada novo passo. A rua, proibida para carros, só se tornava ativa durante o dia, com cafés e lojas comerciais que ficavam apinhadas de clientes. À noite, por outro lado, se transformava no lar dos muitos que buscavam os recônditos dos pequenos becos perpendiculares. O novo ambiente trazia, porém, a lembrança daquela noite maldita: "Foi bem aqui". O suor pingava com mais intensidade do que seus passos ligeiros.

O silêncio também voltara a reinar, até que subitamente um forte vento levantou as folhas secas da calçada. Estática, ela olhou para todos os lados, evitando espiar sobre o ombro. A mão automaticamente foi em direção à bolsa, na busca ilusória por alguma ajuda. “De novo não, não, aqui, não, hoje, não”. – murmurou para si mesma. Buscou tentar caminhar novamente, mas as pernas pareciam ter congelado com a lufada. O único som audível era de sua respiração entrecortada.

Quando conseguiu finalmente dar o primeiro passo para por um fim à agonia, uma mão firme e quente a segurou no ombro. Antes de poder reagir, a figura se prostrou na sua frente, sorrindo de forma gentil. A outra mulher tinha baixa estatura e cabelos ondulados e negros como a lua daquela noite. Usava um vestido simples e vermelho, comprido, e adornava com um chapéu pontudo e preto com fiapos roxos na ponta. Ainda sorrindo para a apavorada transeunte, falou:

- Vamos juntas? Vejo que precisa de uma amiga hoje.

- Ah... sim, haha. É Dia das Bruxas, né? – retrucou, coçando a cabeça com um sorriso tímido.

- Ah, pois é, hoje eu posso andar por aí como sempre quis sem me olharem torto – retruca, oferecendo seu braço em apoio à perplexa parceira.

Fazendo uma careta confusa, fez que sim com a cabeça e se aproximou da mulher fantasiada. “Bom, ela deve estar me zoando para apaziguar os ânimos, só pode”. – e alinhou os ombros. Elas retomam o andar: as batidas agora compassadas, o salto dela em sinfonia com a leve sapatilha da nova aliada. A ruela pareceu ganhar novos tons coloridos; a pressa em atingir a segurança não mais existia. Nada como uma Noite das Bruxas como esta para apagar os traços do passado.



 
 
 

Comentários


Post: Blog2 Post

Formulário de inscrição

Obrigado(a)!

©2020 por Flora Würth Simon - Escritora. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page