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Uma ameaça visível

  • Foto do escritor: Flora Simon
    Flora Simon
  • 22 de dez. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de dez. de 2020

Dessa vez, os passarinhos que a acordaram. Julia desenrolou lentamente os cobertores para o lado, se apoiando nos antebraços para sentar. Piscou os olhos até enxergar a discreta fresta de luz rente ao chão. Sua ressaca não era como a anterior, e sim do jet lag das longas horas no avião e das incontáveis escalas sem sentido. Bocejando, se levantou e se dirigiu à cortina, abrindo-a um pouco mais para conseguir encontrar sua roupa.


Ela nunca fora uma pessoa matinal, mas agora poderia fazer o seu horário ali, no lugar que sempre desejou conhecer. A detetive estava em sua terra favorita, cujos moradores admiravam tanto quanto ela a bebida que lhe causara incontáveis porres icônicos. Rindo sozinha, abriu o armário buscando a roupa mais confortável que poderia conseguir. Afinal, ela merecia estar ali, após tantos longos meses aguentando ordens naquela delegacia – e a promoção finalmente viria, logo que ela voltasse das férias.


Com sua calça de moletom predileta, camisa simples e sobretudo marrom, Julia saiu do quarto salivando com a perspectiva do café da manhã. Ao entrar na saleta onde este era servido, não pensou duas vezes ao acelerar o passo e escolher um lugar na varanda. Com exceção dela, a única outra pessoa presente era uma moça em um dos cantos. Ela observou-a rapidamente, tendo dificuldades para discernir sua idade devido aos seus óculos escuros.


Satisfeita de não ter que ficar de papo furado com ninguém, a detetive se serviu do delicioso cardápio à sua disposição e voltou para a mesa escolhida. Depois do primeiro gole de café, inclinou-se para trás e finalmente relaxou. À sua frente, os verdes campos escoceses se estendiam por quilômetros, contrastando no horizonte com o infinito azul celeste do céu.


Durante sua refeição, Julia não pôde evitar analisar a sua única companheira de ambiente. A moça, que ela simplesmente denominou assim por aparentar ser mais nova do que ela, estava vestida de maneira elegante: Vestido de seda, chapéu com uma única pluma na ponta e óculos de alguma marca famosa. Porém, a detetive observou que o traje da moça contrastava com o seu porte. Ela não parava de olhar para os lados e levar as unhas à boca, além de ter dado um pulo quando o garçom veio recolher seu prato.


Intrigada, mas determinada a não pensar muito naquele momento, Julia finalizou o café e andou determinada para a saída da pousada, com um destino claro em mente: o farol antigo da pequena cidade, o qual permitia visitação somente em algumas épocas do ano. Tendo o caminho apontado pelo guia, foi fácil chegar rapidamente na entrada do ponto turístico.


Antes que pudesse adentrar o hall de entrada do farol, a moça enigmática da varanda puxou-a para o lado, sinalizando com a cabeça uma casinha de madeira nas proximidades. Vendo o olhar aflito no rosto dela, Julia adentrou o local, seguida pela moça que bateu a porta ao entrar.


- Por favor, deixe-me explicar – suplicou ela – Não temos muito tempo.


A detetive concordou com a cabeça – Só fale devagar, por favor, meu inglês está meio enferrujado.


- S – sim! Eu acho que meu marido está me perseguindo, aqui. Ele não aceita... – e desatou a chorar.


- Calma, calma. Conte-me tudo – e apoiou as mãos no ombro dela.


A história que se seguiu não foi nada diferente do que Julia já tinha ouvido de muitas mulheres, no Brasil. A moça, de nome Arianna, foi contando devagar, parando de vez em quando para enxugar as lágrimas com um lenço de papel. Ela contou-lhe que casou ainda muito nova pois precisava do apoio do namorado de escola para criar o filho deles. Eles foram felizes durante muitos anos, tinham uma boa condição financeira e o marido viajava com frequência a trabalho.


Entretanto, há cerca de quase um ano seu marido perdera o emprego. A partir deste dia, e sem conseguir encontrar novas oportunidades, ele passara a beber diariamente. A teimosia em não querer escutar algumas das ideias da esposa e a insistência na bebida o tornaram cada vez mais violento. Após um episódio mais intenso do que o que ela estava acostumada, Arianna fugira com o filho para o lugar mais distante que conseguira.


- Ele sempre foi um bom marido, sabe, eventualmente ele ficava mais agressivo, mas nunca chegou a levantar a mão contra nós. E ele sempre voltava animado das viagens, e super carinhoso, então de certa forma era até bom para nosso casamento quando ele viajava...


- Não precisa se justificar, eu conheço bem o tipinho – comentou Julia – Mas por que você acredita que ele esteja por perto?


- Então, eu sei! Ontem, quando eu estava passeando com meu filho Luke nas bordas do penhasco, eu tenho quase certeza que o vi lá embaixo. Não enxerguei tão bem, mas senti.


- Certo - respondeu Julia, com voz calma mas firme. Imagino que você saiba que sou detetive no meu país? – Arianna concordou com a cabeça – Ótimo. Então volte para a pousada, fique com seu filho no quarto e tranque bem a porta. Pode deixar que eu vou dar uma olhada por aí. Você tem uma foto do seu marido?


- Claro, esta é a mais recente – Arianna lhe passou uma foto dela com o filho, um garoto magrela com cabelo comprido, e no meio deles havia um homem alto e corpulento.


Abrindo a porta para verificar se havia alguém nas redondezas, Arianna saiu primeiro, indo em direção à pousada a passos rápidos. Julia, por sua vez, apressou o passo em direção à trilha oposta, que levava para a beirada dos rochedos. Olhando constantemente para os lados, ela seguiu em frente pelo caminho verdejante até o final da trilha de terra. Ao chegar na ponta do rochedo, olhou para baixo - mas só enxergou o mar batendo nas rochas.


A passos rápidos, Julia seguiu costeando a margem dos rochedos. A paisagem pouco mudava lá de cima, mas ela estava começando a enxergar areia na parte de baixo. A distancia do topo do rochedo e o mar abaixo também parecia estar diminuindo. Mais alguns metros à frente, a detetive notou um semi arco de pedras no chão. A angulação indicava um local criado por mãos humanas para apreciação da belíssima paisagem.


Ao se aproximar das pedras, a detetive ouviu um grunhido raivoso e, com um movimento rápido e preciso, desviou o corpo da massa que avançava em sua direção. O homem, que segurava uma arma na mão, pulou como se quisesse deter Julia em um tackle. Devido às pedras no meio do caminho e o súbito desvio dela, ele tropeçou e bateu com a cabeça direto na pedra mais próxima do rochedo. O barulho fora tão alto que ela teve certeza de que ele nunca mais iria se mover.


6 meses depois

No dia do julgamento, Julia foi declarada inocente. Arianna e seu filho testemunharam em seu favor. O juiz recomendou afastamento do serviço, alegando que Julia se envolvera em uma investigação fora do seu local de trabalho. Ela não se sentia nem um pouco arrependida, mas acatara as ordens, pois isto significava voltar ao seu posto mais rapidamente. O que ela dificilmente esqueceria eram certos olhos castanhos e aqueles gritos: “Se nos encontrarmos de novo, você não me escapa! Ele era minha única família!

p.s.: Se quiser apreciar ainda mais este conto, leia primeiro A Ameaça Invisível no link https://florawsimon.wixsite.com/escritora/post/a-ameaça-invisível

 
 
 

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